2010-02-15

Nas Pontas Dos Pés



Estou sentada na cadeira de baloiço onde me tenho sentado nos últimos anos. As cortinas esvoaçam enquanto a claridade leitosa invade o meu quarto. Não é a morte que me assusta, mas as memórias que levo comigo. Tive uma vida boa, mas poderia ter sido melhor? Não foi uma vida excepcional de "glamour" e requinte. Nestes últimos instantes, passam-me mil imagens em frente aos olhos. Fotogramas a preto e branco, mudos e carregados de pessoas cujos nomes me esforço por lembrar, objectos insignificantes como aquele bilhete de comboio que comprei para ir até Pombal no dia em que fiz 19 anos. Não posso deixar de sorrir. Rosas vermelhas, palavras, dias de chuva, castelos de areia, nascimentos, piqueniques, lágrimas, livros, casamentos, doenças, sonhos, músicas. A minha vida são pedacinhos de nada tão grandes como esta foto. Continuei a balançar na cadeira. Lá fora, o vento sopra delicadamente como o sussurro de um amante. Na minha mão repousa uma foto esmorecida e partida pelo tempo. Eu com 6 anos em frente ao espelho em bicos de pés: “Quero ser bailarina!”. Eram cor-de-rosa os sapatos, lembro-me disso. Conseguia colocar-me mesmo nas pontinhas e levantava os braços e imaginava-me a dançar para uma multidão de pessoas. Deveria ser feliz, penso eu. Tenho uma família, uma casa, um marido que me ama. Tenho dois filhos e netos que me adoram. Sou feliz. Não sou? No meio disto tudo, penso naquele momento. Naquele preciso instante em que tive de escolher “isto”. E lembro-me de ti. Passaram-se quase 40 anos e o teu rosto aparece-me inteiro, tal como da última vez que te vi. Penso em ti exageradamente devagar. Vejo os teus gestos desenrolarem-se em câmara lenta. Relembro os teus beijos e as tuas mãos e o teu sorriso e a tua forma desajeitada de caminhar e a forma como me pedias desculpa com os olhos e os encontros furtivos e o quanto eu era feliz contigo. Ouço o nosso “adeus” que ficou por pronunciar. Nunca gostei de despedidas, sabias disso. Onde estaria hoje se a minha decisão tivesse sido diferente? Estaria nesta cadeira de baloiço? E tu onde estás? Estarás com ela ainda? E eu e tu... Não posso pensar nisso agora. Sacudo a cabeça e afasto-te o rosto para longe com uma das mãos. A tua imagem desvanece-se com a claridade da luz. Resta o teu cheiro. Esse que sempre ficou comigo. Devo descer. Na sala de jantar, espera-me o meu marido. É com ele que devo estar. Amanhã vou comprar uns sapatos cor-de-rosa.


texto cordialmente cedido por Marlene Morais

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